segunda-feira, 3 de maio de 2010

Relatos de um brasileiro na Venezuela Bolivariana - 1

Cumprindo promessa feita em postagem anterior, trago informações sobre a Venezuela que não serão encontradas no PIG.

Emerson Xavier da Silva, além de grande amigo, é membro fundador da Sociedade Bolivariana do Québec. Brasileiro, nascido na Paraíba, criado em Pernambuco e tendo morado no Rio, mora há 10 anos no Canadá, onde trabalha como tradutor, tradutor-intérprete (português, francês, espanhol, italiano, inglês e catalão) e professor de português, francês e espanhol. Faz jornalismo nas horas vagas e é co-autor, com o fotógrafo canadense Éric St-Pierre, de livros sobre o comércio justo (Le commerce équitable. Quand les hommes défient le marché, Le Tour du Monde Équitable).



Em 1998, Emerson dividiu com o jornalista canadense Pierre Duchesne o grande prêmio da Comunidade de Rádios Públicas de Língua Francesa, com uma reportagem sobre o trabalho escravo na Amazônia brasileira. Este prêmio abriu-lhe portas para a atuação jornalística naquele país. Desde então, Emerson tem participado em diversas produções radiofônicas, televisivas e na imprensa escrita de língua francesa do Canadá.

É ainda porta-voz mundo afora da Sociedade dos Povos pelo Ecodesenvolvimento da Amazônia, trabalhando intensamente para abrir mercados para o guaraná nativo e outros produtos amazônicos produzidos pela nação Satéré-Mawé (o povo do guaraná) e por seus aliados caboclos organizados em cooperativas. Encontra-se atualmente na Venezuela, onde visita cooperativas de produtores agrícolas e aproveita para enviar relatos do quotidiano de um país em plena Revolução.

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Não precisei puxar conversa sobre política com o taxista que me levou ao meu hotel a partir do aeroporto Eduardo Gomes. Ele mesmo lançou o debate, desejoso de ouvir algum discurso que o confirmasse em sua firme intenção de votar em Dilma Roussef nas próximas presidenciais. “Temos de continuar com o Lula”, insistia ele, com convicção. Ao saber que pretendia ir em breve à Venezuela, o moço já não manifestava o mesmo entusiasmo.

- Isso pode ser perigoso, com as palhaçadas do Chávez. Essa história de fechar televisões...

Tive de gastar muita saliva para explicar àquele simpático profissional que na verdade nunca houve nenhum fechamento de nenhuma televisão por parte de Hugo Chávez ou seu governo. Aconteceu o contrário. Foi a oposição a Hugo Chávez que fechou, manu militari, um canal de televisão quando do golpe de 2002, que deixou dezenas de mortos. Foi também esta mesma oposição que fechou uma tevê comunitária, confiscando-lhe inclusive todo o seu material, meses depois. Uma mentira repetida pode acabar se tornando uma verdade, pregava o propagandista maior do nazismo. Goebbels diria ainda: “Caluniai, caluniai, sempre sobrará alguma coisa.” Embora aberto às novas informações que trazia, o taxista concluiu a conversa com seu próprio testemunho ocular da Venezuela. “Recentemente, fui à Santa Elena de Guairén, na fronteira. Lá, todo mundo está com muita raiva do Chávez. E agora, com a desvalorização do bolívar, dizem que a cidade está totalmente desabastecida.”

Em Manaus, busquei contato com meus companheiros da Sociedade dos Povos para o Ecodesenvolvimento da Amazônia. O dr. Maurizio Fraboni, organizador do comércio justo de guaraná na França e na Itália, solicitou-me de imediato que participasse de uma reunião com Raimundo Nonato, presidente da Acopiama (Associação de consultores e pesquisadores indigenistas da Amazônia) e professor de antropologia da Universidade Federal do Amazonas, UFAM.

Nonato desenvolve um trabalho de cooperação com a Universidade Indígena da Venezuela, UIV, que ele visita anualmente com colegas e estudantes. A ACOPIAMA é um dos principais parceiros do Projeto Guaraná, do qual sou porta-voz no Canadá há mais de 5 anos. Na sede de sua instituição, Nonato me esperava.

-Dentro de três dias, irei com minha equipe para a Venezuela. Será uma viagem longa, cansativa e não sem perigos. Vamos atravessar boa parte de nossa floresta, a reserva Waimiri-Atroari, a Grande Savana venezuelana, subir ao norte do Estado Bolívar e depois voltar a descer para tomar a estrada que nos conduzirá ao território da UIV.


O convênio entre a UFAM e a UIV é uma ambiciosa promessa de intercâmbios de informação. Indígenas e universitários brasileiros vão aprender e ensinar na UIV, em Tauca, e também indígenas venezuelanos viajam ao Brasil com o mesmo objetivo. A UIV tem suas peculiaridades. Todo o ensino é centrado na práxis. Dez etnias fazem parte do projeto. As aulas matinais incluem exposições, pesquisas por internet, discussões, aprofundamento de temas candentes. À tarde, há uma aplicação prática do que tiver sido estudado. Esta aplicação é novamente discutida para que haja novos aprofundamentos. Para seus coordenadores, esta metodologia é a mais adequada à visão de mundo das comunidades autóctones. O estudo parte da realidade concreta dos indígenas, contempla a preservação florestal e não obedece a um currículo pré-estabelecido.

Há também um trabalho na área de piscicultura. Em 2006, os alunos da UIV produziram duas toneladas de peixe, que foram vendidas nos mercados da cidade mais próxima. A idéia de ampliar a educação superior indígena vem fazendo seu caminho. Em 2009, indígenas de diversos países (Chile, Equador, Venezuela, Estados Unidos, Bolívia) e dos Estados brasileiros de Roraima, Amazonas e Pará, reuniram–se na Amazônia brasileira para discutir os rumos desse ensino superior.

O objetivo específico dessa missão liderada por Nonato é o ensino de técnicas do Sistema de Informação Geográfica para que os estudantes da UIV possam mapear suas comunidades identificando seus respectivos recursos.
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Longe de albergues, passamos a primeira noite à beira da estrada. Os motoristas estavam exaustos e teria sido perigoso continuar em tais condições. As chuvas preenchiam os numerosos buracos da estrada, impedindo qualquer discernimento. A prudência ordenou-nos o repouso. Cada um teve de encontrar a posição que menos lhe destruísse a carcaça.

Em Roraima, o culto ao progresso é uma religião realmente levada a sério. Em toda parte, painéis publicitários mentirosos (uma tautologia?) celebram a “grande contribuição do agronegócio para o desenvolvimento do Estado.” Ao lado de publicidades de diferentes marcas de arroz, painéis instalados por associações políticas proclamam: “Eles nos tomaram a Raposa do Sol. Agora, eles querem nos tomar a Serra da Lua.” O ódio contra nossos irmãos autóctones é cuidadosamente cultivado pelos destruidores da terra, os apóstolos do desenvolvimento.

A população que ali encontrávamos era em maioria oriunda do Nordeste, homens e mulheres fugiram da seca e da opressão de latifundiários e se instalaram na Amazônia cultivando o sonho de uma vida melhor. De uma manipulação de coronéis a outra, na Amazônia, essas pessoas acabam se tornando agentes do “progresso” contra a “selvageria dos índios”. Foi com dor que constatamos em toda parte, em povoados pobres e em restaurantes, a multiplicação de emblemas com as cores da bandeira nacional com a inscrição: “Vergonha! Eles nos tomaram a Raposa do Sol”. O trabalho sujo de patrões de imprensa e seus cúmplices é ainda eficaz. Em Roraima ou alhures, conseguem fazer com que pobres de beira de estrada se identifiquem a ricos fazendeiros ligados a transnacionais do agronegócio.
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A Grande Savana venezuelana remeteu-me à minha pequenez humana, à minha insignificância de ser frágil e efêmero em meio a tantas maravilhas da Criação. Planícies e montanhas a perder de vista e, dominando o horizonte, o monte Roraima. Estes grandes espaços inefáveis levam-nos a mergulhar em estado de meditação. Senti-me invadido por uma certeza: estas imensidões em que não percebemos cidades ou povoados são dotadas de consciência mineral, pois essas montanhas são seres vivos, anunciadores de verdades que poucos humanos podem compreender.

O sol já nos havia deixado e estávamos ainda na Grande Savana quando a fome ordenou-nos uma parada. Não havia restaurante na primeira comunidade que encontramos pelo caminho. Todos os habitantes ali pertenciam à etnia Pemon. Vendo meu bótom bolivariano, o jovem vendedor de artesanato lançou-me em forma de adeus: "Aqui somos todos bolivarianos!"

Santa Elena era apenas uma lembrança... ou quase. Em diversos pontos da estrada, podíamos ver cartazes com as inscrições: "Não à invasão de Santa Elena!” ou “Senhor prefeito, detenha a invasão de Santa Elena!” Mais tarde, nos explicariam que se tratava de um protesto contra ricos de Santa Elena, que tentam se apropriar de territórios pertencentes aos autóctones.

Continuamos nossa viagem. De repente, percebemos um grande salão cheio de gente, que acreditamos ser um restaurante. Estacionamos nosso ônibus e descemos. Fomos recebidos com transbordante gentileza.

- Queiram nos desculpar, senhores, senhora, mas isso não é um restaurante, mas um encontro familiar do povo Arekuna. Vocês encontrarão um restaurante a poucos quilômetros daqui. Antes que vocês partam, no entanto, temos algo a lhes anunciar. Estamos aqui celebrando a realização iminente da grande profecia de Auká, aquela da união das quatro raças, que terá lugar aqui, na Grande Savana venezuelana. Os vermelhos, os amarelos, os brancos e os negros formaram em breve uma só humanidade reconciliada.

Voltávamos ao nosso ônibus quando o ancião nos chamou outra vez: “Se vocês estão passando agora aqui, na Grande Savana, é que vocês também fazem parte da profecia de Auká."

Estávamos ainda sob o choque de tal experiência quando chegamos ao lugar indicado pelo ancião Arekuna. Um restaurante popular e um outro mais luxuoso, albergues e algumas casas compunham a paisagem humana. Todos os habitantes eram Arekuna e todos os visitantes pertenciam às outras raças destinadas a viver a união definitiva de nossa espécie.

No pequeno restaurante em que tomamos assento, um grande cartaz celebrava a realização da grande profecia.

O pessoal que fazia seu trabalho com evidente frenesi, todos eram Arekuna de todas as idades, gente dotada de uma beleza fora do comum. Seus generosos sorrisos exibiam belos e íntegros dentes. Eram pessoas visivelmente felizes e bem-alimentadas.
Antes de nos apresentar o rico cardápio, dois garçons ainda adolescentes fizeram questão de nos falar da profecia de Auká.

- Nosso profeta morreu há 120 anos, mas jamais esquecemos a sua mensagem. Vocês já ouviram falar do filme ‘2012’? Esse filme está errado. Não será o fim do mundo, mas o fim deste mundo de guerras e conflitos. A Grande Savana venezuelana é um lugar sagrado. O profeta Isaías já falava da Venezuela, que ele chamava ‘A rainha do Sul’ em seus escritos. Jesus corroborou suas palavras. Ele sabia que um dia a Venezuela existiria para desempenhar um papel fundamental na redenção da humanidade.

-Vejam esse mapa de nosso país. Não estão vendo a silhueta de uma mulher?

- Claro! – respondi eu, embora não visse nada.

- Eis porque Isaías falava da Rainha do Sul. A união das quatro raças terá lugar apenas depois da rebelião dos povos. Há vários sinais disso. Chávez mudou a posição do cavalo em nosso símbolo nacional. Antes, ele cavalgava rumo à direita. Agora, ele cavalga rumo à esquerda. Auká já havia previsto que isso aconteceria.

-Chávez faz parte então dessa profecia?-perguntei.

-Claro, respondeu o adolescente Arekuna, mas ele está ainda adormecido pela Razão.


-Digam isso a ele, então!


-Já dissemos. Mandamos tudo isso pra ele, todos os documentos. Ele já sabe, mas não pode ficar muito adiante do povo. Toda precipitação seria nociva. É preciso que o povo se levante primeiro.

Algumas moças, belas como princesas índios de mitos fundadores, discutiam com membros de nossa equipe. Elas lhes atribuíam novos nomes a partir de sua lógica cultural. Também eu quis ter a honra de receber um novo nome dado pelo povo do profeta Auká. Aquela que me pareceu a mais bela do grupo (que difícil escolha!), escreveu meu nome sobre um guardanapo e disse:

-Você é IKPAI CHIKPOI PUN: aquele que não tem cabelos na cabeça!

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