O primeiro pode ser lido aqui
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Não estávamos em condições de dormir dentro do ônibus. Teria sido de grande imprudência, pois nossos motoristas precisavam de um verdadeiro repouso para levar-nos com segurança a bom porto. Seria ainda maltratar inutilmente nossos corpos envelhecentes. Paramos pois no primeiro hotelzinho do primeiro povoado na saída da Grande Savana. Em meu quarto, tentei em vão captar Venezolana de Televisión, o canal do Estado, que enfrenta a mídia privada e sua desinformação permanente.Eu podia captar perfeitamente um canal da República Dominicana, dois canais privados que difundem às vezes apelos mal disfarçados ao assassinato do presidente da república (isso, eu vi e ouvi; ninguém me contou), canais estadunidenses e até mesmo da Colômbia, país que recentemente invadiu o espaço territorial venezuelano, matando dois de seus soldados! Mas me foi impossível captar o canal de Estado.
No entanto, toda a grande mídia do planeta, inclusive brasileira, fala de uma Venezuela sem liberdade de expressão, onde os espaços democráticos diminuem a cada dia. Pergunto-me como é possível mentir tão descaradamente.
Dormir estendido numa cama fez-me um grande bem. Levantei-me assaz disposto. Mesmo sem fome, fui ter com membros da equipe que tomavam seu desjejum numa padaria de propriedade de uma venezuelana originária da Ilha da Madeira. Ao perceber meu bótom bolivariano, a gentil senhora me tratou de louco e de imbecil, demonstrando assim todo o seu civismo, sua grande sensibilidade e sua nobreza de espírito. Respondi apenas com sorrisos.
Seu aparelho de televisão estava ligado em Venevisión, um canal que participou abertamente do golpe de Estado de 2002, diretamente responsável, como os outros canais privados, de dezenas de assassinatos. Venevisión é o perfeito exemplo da falta de liberdade de expressão que grassa nesse tipo de mídia.
É bem verdade que este canal renunciou às campanhas de ódio desmedido, como aquelas ainda feitas pelo canal Globovisión, mas, na verdade, seu militantismo de extrema-direita tornou-se apenas menos descarado. A reportagem matinal tratava das atividades do governo e da oposição na véspera, dia 27 de fevereiro, data fatídica do começo da explosão social reprimida pelo governo Carlos Andrés Perez, em 1989, e que fez milhares de vítimas fatais.
"Ontem, em Caracas, partidários do governo se reuniram para lembrar os eventos conhecidos como ‘o Caracazo’ – disse, lacônico, o apresentador robô. Durante alguns segundos, podia-se ver e ouvir um trecho do discurso do presidente. A reportagem não dizia que os « partidários do governo » eram centenas de milhares. Tampouco lembrava aos seus telespectadores que o ‘Caracazo’ havia sido um massacre de civis praticado pela atual oposição, quando esta era governo.
Carlos Andrés Perez, vulgo CAP, grande amigo de Fernando Henrique Cardoso, acabara de ser reeleito presidente com um programa que prometia maravilhas. Mal foi investido em suas funções, CAP assumiu o programa ditado pelo Fundo Monetário Internacional e aumentou os preços dos produtos de base, alguns em até mais de 300%, tornando impossível a sobrevivência de milhões de venezuelanos. As pessoas saíram às ruas, improvisaram micro assembleias e passaram a tomar com suas próprias mãos o fruto de seu trabalho. Segundo o professor Luis Britto García, grande intelectual venezuelano, o Caracazo, também chamado Sacudón, foi uma revolta contra a sacro-santa propriedade privada. CAP reprimiu a revolta com um banho de sangue. A polícia política e parte das forças armadas atiravam em tudo o que se mexesse, matando entre 3 e 10 mil pessoas. Nunca se saberá ao certo o número de vítimas.
Quando a ordem foi restabelecida, as mídias se felicitaram mutuamente e aplaudiram a ação restauradora do governo. O Caracazo está na origem da Revolução bolivariana, um movimento democrático liderado por Hugo Rafael Chávez Frías. Outros massacres haviam sido antes cometidos pela atual oposição venezuelana, pelos inimigos de Chávez : Cantaura, Yumaré, Retén de Catia, Amparo e tantos outros. Entre 1958 e 1998, aqueles que a grande mídia apresenta como democratas oprimidos por um malvado ditador (que ganha uma eleição atrás da outra) causaram a morte de cerca de 10 000 opositores políticos. Muitas dessas vítimas eram drogadas e depois jogadas vivas ao mar.
Estas operações, realizadas com a colaboração dos Estados Unidos, se reproduziram em outros países do continente. Na Venezuela, houve um Plano Condor avant la lettre. Ainda hoje há uma associação de vítimas dos governos venezuelanos do período 1958-1998, que a grande mídia e certos universitários chamam cinicamente de “o período democrático”.
Tentei fazer com que jornalistas canadenses encontrassem os membros desta associação. Um destes profissionais da comunicação, homem digno e acima de qualquer suspeita, foi impedido de abordar o tema por seus superiores para os quais “as pessoas daqui não se interessam por esse tipo de tema”. Ignorância ? Estupidez ? Crueldade ? Cumplicidade fria com os piores horrores de nosso tempo ? Tudo isso ao mesmo tempo, acho.
Quanto aos outros jornalistas aos quais propus conhecer a mesma associação de vítimas do “período democrático”, eles tinham outra coisa a fazer, ora!
Mas, voltemos à nossa cara Venevisión. Depois do minuto reservado aos “partidários do governo", os jornalistas reservaram 2 minutos para cada bando de uma oposição dividida em grupúsculos ultra fascistas. No total, 8 minutos para os herdeiros políticos dos autores de massacres de civis contra 1 minuto para um governo democrático várias vezes eleito. Quanta objetividade! Mas isso não foi tudo. Em seguida, vieram os « analistas », todos 100% de acordo com os grupos de oposição. Esta é a objetividade do canal Venevisión, que esta mesma oposição ao governo bolivariano acusa de ser “vendido ao chavismo”. Não é pois de se estranhar que, sob um tal bombardeio midiático, cerca de 40% da população se disponha ainda a votar por seus antigos algozes.
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