quarta-feira, 12 de maio de 2010

Relatos de um brasileiro na Venezuela bolivariana - 3

Dando continuidade aos relatos do meu amigo Emerson Xavier, publico a descrição de como se faz a ocupação de um espaço público em um país onde o povo exerce seus direitos e faz valer sua opinião.

A assembleia é pra discutir a construção de um centro esportivo. Os que falam da falta de democracia na Venezuela deveria procurar saber o que ocorre lá. Lendo o relato do meu amigo, pensei na nossa Vila Olímpica.

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No dia seguinte à grande manifestação pelo retorno à democracia, minha amiga Egla convidou-me a uma reunião de representantes de Conselhos Comunais de Parque Central com diretores do Centro Simón Bolívar. Parque Central é um conjunto residencial onde residem 1.300 famílias, situado bem no centro de Caracas.


No monumental desenvolvimento urbano encontram-se as Torres Gêmeas de Parque Central, que, durante décadas, foram um verdadeiro ícone da arquitetura caraquenha. Estas torres são os edifícios mais altos de toda a América do Sul. O Centro Simón Bolívar é uma instituição encarregada da administração dos espaços urbanos. Naquela noite, a sala 4 do Parque Central estava repleta. Contei à minha chegada umas cem pessoas, mas a massa continuava afluindo.

Dois burocratas e uma arquiteta começam uma apresentação de slides do novo Centro Desportivo que o Centro Simón Bolívar pretende construir no bairro. Este Centro terá salas de aula e espaços para as reuniões dos Conselhos Comunais.

Ao fim da apresentação, uma senhora loura, estrategicamente sentada no meio da primeira fila puxa um slogan revolucionário que a multidão geralmente entoa quando Chávez anuncia medidas revolucionárias: “Así, así, así que se gobierna!” E em seguida: “Patria Socialista o Muerte!” A palabra é dada em seguida o público presente.

Uma jovem senhora faz a primeira intervenção. “Primeiramente, faço questão de saudar o fato de que é a primeira vez que os Conselhos Comunais são considerados na elaboração de um projeto desse tipo. No entanto, onde vocês previram instalar esse novo centro? Se for na quadra de jogos da rapaziada, não estou de acordo. Tem mais. Em Revolução, o esporte é muito mais que um conjunto de exercícios musculares. Lembremo-nos de que, no Socialismo, o projeto integral é: esportes, formação e saúde. Esse projeto não prevê serviços de saúde para os usuários. Haverá medicina desportiva para determinar se uma pessoa é apta para praticar tal ou tal esporte?”

Um dos burocratas replica: « Mas em breve será construído um Centro de Diagnóstico Integral no bairro!”

“Não é a mesma coisa – insiste a senhora – Nós queremos um projeto integral!”

O burocrata parte para a sedução.

“Lembrem-se vocês que a construção do Centro Esportivo vai criar empregos para a Comunidade. Não devemos atrasá-la.”

Uma senhora idosa se queixa do fechamento de um centro odontológico e da inação da Guarda Nacional para combater a insegurança da área. Os burocratas se limitam a dizer que vão entrar em contacto com seus superiores para impedir o fechamento do centro.

Uma delegada do Partido Socialista Unido da Venezuela, PSUV, usando orgulhosamente uma camiseta vermelha, exige uma mesa de negociação para modificar o projeto. Minha amiga Egla diz a mesma coisa e acrescenta uma série de questionamentos. Que tipo de janela foi previsto? Vai ser possível evitar a instalação de aparelhos de ar condicionado? Pensaram na mudança climática atualmente em curso?

Os burocratas se põem a discutir entre eles e minha amiga Egla pára imediatamente de falar. A multidão protesta furiosamente e pede que ela continue. Egla fuzila com o olhar os burocratas conversadores : "Quando a fala é pra ser escutada".

Os burocratas se calam e ela continua: "Os Conselhos Comunais têm de ser ouvidos a cada etapa da elaboração dos projetos. Nós queremos saber que materiais serão usados, se haverá reciclagem e como a concepção prevê a integração das crianças marginalizadas."

Pela primeira vez, a jovem arquiteta toma a palavra. “Às vezes, a comunidade fala demais. Não pra administrar isso. Esse projeto foi concebido com a participação da comunidade há 5 anos. Mas ele foi esquecido e engavetado. Nós tiramos a poeira desse dossiê para oferecer um presente à comunidade."

Sem saber, a jovem arquiteta acabara de provocar um incêndio. As intervenções se sucederam.

“Nós estamos em Socialismo. O termo “presente” é uma ofensa para Revolucionários!” Pálida, a arquiteta pede desculpas. O burocrata chefe toma-lhe o microfone.

-Este projeto, nós o executamos e vocês vão administrá-lo. Nós podemos aceitar sugestões, mas há coisas que não podem ser modificadas. Os créditos já foram aprovados.

- Então pra quê consultar a gente?- se insurge uma senhora do fundo da sala. Outra mulher interveio. “Eu também sou engenheira. Vocês deveriam ter previamente consultado a comunidade, essa comunidade aqui, que não estava presente há 5 anos atrás.” A mulher interrompe sua fala sob os protestos da multidão. “Os senhores gostariam que eu desse as coisas na hora em que estão falando?” Completamente ultrapassados pelos acontecimentos, os burocratas multiplicam suas desculpas. “ Minha função aqui é ouvir as queixas de vocês e levá-las à direção do CSB.”

Quando o presidente Chávez se declara feminista, é que ele tem boas razões para tal. As mulheres revolucionárias são numerosas na composição do governo. Numa assembleia como essa, só dois homens intervieram. E foi ainda uma mulher que tomou a palavra.

“Este projeto foi concebido antes da organização do Poder Popular. É preciso pois atualizá-lo. No passado, a mao-de-obra empregada nos projetos quase não vinha da comunidade. As construtoras e as máfias sindicais entravam em acordo para excluir os comunitários. Dessa vez, nós queremos saber qual será a empresa responsável da execução do projeto para que estejamos seguros de ter empregos para nós.”

Outra senhora falou sobre a atualização do projeto. “Nós podemos modificar todo o projeto. Chávez é nosso grande mestre e ele nos ensinou que nós devemos exercer o poder popular. Vocês são profissionais, mas vosso profissionalismo foi marcado por uma escola positivista. A questão é que hoje em dia nós somos mais socialistas do que ontem. E é preciso participação popular para construir o socialismo. Nós estamos aprendendo a nos adaptar aos novos tempos. Nós e vocês. Não é fácil discutir com a comunidade, isso é verdade, porque nós estamos mais preparados e somos mais exigentes. Sim, senhores, para esse projeto, vai ser preciso pensar em árvores, em emissões de gases de efeito estufa, em produção de calor."

Uma médica intervém. “Eu sou médica. Já nasci com algo de socialismo. Com o tempo, o socialismo assumiu em mim novas dimensões. É verdade que hoje estamos mais preparados do que antes, mas isso não tem nada a ver com diplomas. Estamos mais preparados porque estamos mais despertos. O fato de ser médica, engenheira, arquiteta tem pouca importância. É preciso ouvir a comunidade porque não dá pra dizer amém a tudo o que nos propõem."

A mulher loura que, no começo da reunião, havia tentado levantar a massa com lemas revolucionários levantou-se e disse: “Sou porta-voz de um Conselho Comunal. Já fui revogada 5 vezes e reeleita 10! Sou revolucionária e venho de uma família onde havia comunistas e fascistas. É verdade que há burocratas contra-revolucionários, que não levam em conta os Conselhos Comunais. Mas Chávez disse: ‘Lutem pelos seus direitos!’ Pois bem, é o que nós vamos fazer!”

O burocrata chefe limitou-se a dizer: “Sim, nós vamos escutar vocês”.

A delegada do PSUV disse-lhe: “Voltem aqui com um projeto mais humanista”.
“Sim – diz o burocrata- e a comunidade será leva em conta na criação de novos empregos”. Um jovem fez a última intervenção.


“Si estamos em Socialismo, a comunidade deve se apropriar do projeto, saber que impactos ele pode ter sobre seu conjunto!”

Mais vermelho de vergonha que de ideologia, o burocrata chefe lançou à multidão: “Pátria, Socialismo ou Morte!”

E foi admoestado uma última vez. “Não! Como você está por fora ! O lema mudou. Agora é : Pátria Socialista ou Morte !"

A reuniao com o CSB chegou a seu termo, mas 70% dos presentes continuaram na sala para discutir sobre as festividades do Bicentenário da Independência. E a nova reuniao começou por uma autocrítica.

“Nós criticamos as instituições. Muito bem. Mas nós também cometemos erros." Outra senhora sugere. "Para a festa do Bicentenário, vamos insistir sobre o caminho rumo ao Socialismo para uma vida melhor.” As proposições se sucedem.


“O presidente nos convidou à grande cerimônia do dia 19. Vamos adiante então e façamos nossa festa no dia 20. Abril daquelas e daqueles que lutam. Abril, mês dos livros, da consciência, da construção do Socialismo.”

“Devemos pensar nos presentes para as crianças.”

“E a todos os aspectos da programaçao: fotos, poesia, origami, os contadores, a preparação para terremotos, as marionetes, o teatro, as discussoes sobre o câmbio climático, os desenhos de figuras do Bicentenário. ”

“Não esqueçamos as atividades ‘Cuidado com a Televisao’ e ‘Encontro com as mulheres palestinas’”.

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Para ler os outros relatos, é só clicar em:
Relato 1
Relato 2

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