segunda-feira, 31 de maio de 2010

Relatos de um brasileiro na Venezuela bolivariana - 4

Continuando os relatos do meu amigo Emerson Xavier, a úlima aventera antes do grupo chegar à Universidade Indígena da Venezuela.

*******************************************************

Fizemos uma pequena parada na cidade de Upata para telefonar a Zelaya, um professor universitário que deveria juntar-se à nossa equipe a partir da cidade de Puerto Ordaz. O grande ônibus brasileiro chamou a atenção dos passantes. Um jovem popular perguntou-me o que vínhamos fazer em seu país. Buscando medir o sentimento político ambiente, disse-lhe que vínhamos em viagem de solidariedade com a Revolução. O rosto do moço iluminou-se. “Aqui, nós somos revolucionários a 100%”, disse-me ele, com firmeza. Tal não foi a reação de um vendedor ambulante de bandeiras nacionais. Lancei-lhe meu balão de ensaio:

- Viva Chávez!

- Ah, não! Chávez não! De jeito nenhum. Viva a Venezuela! - foi sua resposta indignada.

No quiosque onde fomos telefonar, uma mui agradável descoberta. Desde as nacionalizações, as comunicações telefônicas não custam grande coisa na Venezuela. É o oposto do que acontece no Brasil, onde a privataria da sinistra era FHC faz com que paguemos a segunda tarifa mais cara do mundo por um serviço de duvidosa qualidade. E pensar que a direita se orgulhosa de ter feito isso, com todos os estragos que isso representa para a vida quotidiana dos cidadãos e para a economia do país.

Zelaya havia marcado encontro conosco cerca da estação rodoviária de São Felix, cidade contígua àquela de Puerto Ordaz. A 10 de onde estacionamos nosso veículo, vimos um acampamento de famílias indígenas, miserável como as favelas que surgiam como cogumelos depois da chuva no Brasil dos anos 80 e 90.

Crianças indígenas brincavam sobre a calçada e nos observavam com evidente temor. Do interior de nosso ônibus, um membro da equipe cometeu o erro supremo de fotografá-las. A porta do veículo estava aberta. Os motoristas e o professor Nonato haviam descido para espreitar a chegada de Zelaya.


De reprente, um homem invade nosso ônibus perguntando gressivamente quem havia tomado fotos de sua comunidade.


"Vocês não têm o direito de fazer isso sem pedir minha autorização. Sou o chefe dessa comunidade. O que vocês fizeram é uma vergonha!” Ignorávamos ainda que um de nós havia efetivamente cometido tal asneira. Ao cabo de alguns minutos, conseguimos acalmar o homem e convencê-lo de que tudo não passava de um mal-entendido. Ficaríamos sabendo depois que o acampamento em questão era constituído de membros da etnia Warao. Aquelas pessoas haviam sido expulsas de seu território, à beira do rio Caroní, pela seca que então arrasava toda a Venezuela. Zelaya nos explicaria mais tarde que à seca acumula-se a incapacidade das autoridades de lidar com a questão indígena.

No restaurante da rodoviária, pedimos algumas cervejas para aguardar o serviço. “Não servimos álcool nem vendemos cigarros.” – disse secamente a garçonete. Com efeito, novas leis regulamentam a venda destes produtos em todo o território nacional. Com o compreensível apoio das mães de família, o governo lançou uma vigorosa campanha contra o álcool e cigarros acompanhada de medidas repressivas e educativas que os “liberais” viscerais qualificariam de atentado às liberdades doutrinamento ideológico. Isso não impede que tenhamos painéis publicitários gigantescos com a cara de Sting sugerindo o consumo de tal marca de uísque. Evidentemente, há pontos de venta clandestinos que molham as mãos de alguns funcionários corruptos.

Zelaya finalmente chegou em seu carro velho acompanhado de sua jovem esposa. "Só vou poder levá-los até a saída da cidade. Não irei além. Meu sogro faleceu ontem. Estamos em pleno velório." Entrei no seu carro para aproveitar dos poucos minutos e me informar um pouco mais sobre a Revolução em curso. Tal foi nosso pingue-pongue.

- Você acha que os partidos da Revolução sairão vitoriosos nas próximas eleições legislativas de setembro?


- Não tenho a menor dúvida, mas não se deve crer por isso que tudo seja positivo neste processo. Os oportunistas que estão à volta de Chávez, os revolucionários da boca pra fora, são bem numerosos.


- Isso não é nenhuma novidade. Na verdade, sempre soubemos disso desde o começo.

- Sim, mas eu mesmo nunca havia imaginado que esses tipos fossem traí-lo com tanto descaramento.

- Você se refere ao governador que acaba de deixar o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) para aderir ao partido azul, o Pátria para Todos, que apóia a Revolução... mas nem tanto assim?

- Entre outros. Este governador ao qual você faz alusão é um belo exemplo desse gravíssimo problema. Ele teve de escolher entre Chávez e os magnatas de seu Estado. Ele escolheu os magnatas e saiu do Partido..

Zelaya continua:

- E tem mais. A corrupção existe em vários ministérios e permanece um entrave para o avanço do processo revolucionário. A questão indígena é muito mal administrada pelo governo. Que o diga o povo Yupka. Na Universidade Indígena, você poderá talvez encontrar filhos do cacique Sabino, injustamente encarcerado por conta de um conflito com criadores de gado. Pena que você só fique um mês. Não sei se vai ser tempo suficiente para ganhar a confiança deles e daí fazer uma entrevista. Em todo caso, vale a pena tentar.

Claro que vale a pena. Minha decisão estava tomada. Eu tentaria.

-----------------------------------------------------------------

Zelaya voltou ao velório de seu sogro e nós prosseguimos nossa estrada devidamente orientados. Quanto mais avançávamos, mais compreendíamos a dimensão da seca que castiga a Venezuela. O rio Caroní havia baixado de 17 metros! Assim não há Revolução que agüente.

Às 20 horas, estávamos esfomeados e esgotados pelo calor. Três horas de estrada ainda nos separavam da UIV. No céu, uma imensa lua avermelhada nos distraía dos tormentos do calor extremos e dos insetos cada vez mais vorazes. O patrão do albergue onde paramos estava sinceramente desconcertado.

"Senhores, não temos mais nada. A não ser que vocês aceitem um improvisado de macarrão com sardinha”. Com a fome que tínhamos, aquelas palavras soaram aos nossos ouvidos como a mais bela das músicas, um coral da Messa Arcaica de Franco Battiato. O mesmo senhor tão prestativos deu-nos a trágica informação do terremoto ocorrido no Chile.

"Aqui, no Estado Bolívar, estamos protegidos dos movimentos sísmicos, mas Caracas é uma zona sensível. Tomara que nada nos aconteça." Ele falou-nos ainda de seus projetos. Graças à Revolução, ele ia poder contrair empréstimos a taxas razoáveis e aumentar seu estabelecimento. Com alegria antecipada, ele descrevia as instalações de seus sonhos, os quartos com ar condicionado, com opção de ventilador para os alérgicos, os novos banheiros... Seria para acolher todo mundo, inclusive os mais pobres.

- Tenho horror à idéia de dizer não a uma pessoa que eu não poderia acolher em meu hotel só por uma história de dinheiro. Ah, não, isso não!

Nutridos pela comida improvisada e pelo testemunho de tanta boa vontade, percorremos os últimos quilômetros que nos separavam de nosso destino. Um mata espessa resistia às margens do rio e de seus afluentes, contrastando com a vasta savana seca e queimada até a tristeza. A hostilidade do meio ambiente nos lembrava que somos os principais responsáveis por esses desequilíbrios geocidas. Em poucos minutos, fui vencido pelo calor e pelo cansaço.

Chegávamos à cidade de Maracaibo, uma das maiores metrópoles venezuelanas. A luz incandescente da cidade me aturdia. Parecia que todas as lâmpadas de todos os andares dos gigantescos edifícios permaneciam acesas. Não respeitam pois o racionamento elétrico imposto pelo governo? Minha principal preocupação era telefonar a David Baéz, o segundo presidente da Sociedade Bolivariana do Quebec, trabalhando atualmente como professor de economia na Universidade. Ela era meu único contacto em Maracaibo e eu já começava a me angustiar com a idéia de não achar seu número de telefone quando a voz do professor Nonato me arrancou de meus delírios oníricos:


- Pronto, rapaziada! Chegamos à Universidade Indígena da Venezuela!


******************************


Os relatos anteriores podem ser lidos nos links abaixo
Relato 1
Relato 2
Relato 3

Nenhum comentário:

Postar um comentário