sábado, 5 de junho de 2010

Relatos de um brasileiro na Venezuela bolivariana - 5

Mais um relato do meu amigo Emerson Xavier sobre a Venezuela.

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Nossos corpos umedecidos pelo suor eram vistos por legiões de insetos como um banquete inesperado em plena noite. O calor continuava arrasador; a sensação de sujeira corporal, insuportável. No entanto, Prudência nos dizia que deveríamos esperar a manha para tomar banho. No caminho do rio, serpentes venenosas poderiam nos surpreender e nos trazer um problema no qual preferíamos não pensar. Melhor seria instalar nossas redes e deixar que o cansaço e o sono se instalassem apesar do desconforto.

Alguns haviam trazido sacos de dormir, mas não iam poder usá-los. A presença de inúmeras espécies de escorpiões tornava pouco recomendável dormir no chão. Em meio a esses pequenos e grandes perigos, a presença de Enjayumi tinha algo de tranqüilizador. Descalço, nu da cintura pra cima, este autóctone Yekwana, coordenador geral da UIV, falava com uma voz calma, capaz de espantar qualquer temor. Perguntei-me como se poderia dizer em sua língua o oxímoro “jovem sábio”. Teria ele adivinhado minhas elucubrações? Em todo caso, mais humorista que filósofo, Enjayumi, assim como fizera seu irmão Arekuna da Grande Savana, atribuiu-me um nome que, segundo seu julgamento, melhor me convinha.

"Você é TEREKUKATO, o que quer dizer, “aquele que não tem cabelos na cabeça".

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Nossa habitação coletiva é uma imensa casa redonda, de taipa, coberta de um teto de palha sustentado por uma estrutura de madeira. Sobre suas paredes externas estão escritos os nomes das dez etnias presentes na UIV: pume, yekwana, piaroa, sanema, karina, pemon, eñepa, warao, yukpa, kuiva. Cada etnia tem sua própria aldeia, onde as casas são construídas segundo cada tradição cultural respectiva. 97 estudantes autóctones escolhidos por suas próprias comunidades estudam na UIV seguindo métodos pedagógicos que a universidade convencional teima em não reconhecer. As atividades começam às 05h45min, quando é preciso ir buscar madeira, apanhar água no rio, preparar as refeições que são tomadas coletivamente. As atividades se terminam às 22h00. As aulas teóricas, dadas em castelhano, são seguidas de exercícios práticos. Avaliação, crítica e autocrítica integram igualmente o pão quotidiano. As aldeias étnicas são distribuídas em círculos concêntricos em volta de um módulo principal em que funciona um “infocentro”, com telefone e computadores conectados à Internet.

Tendo começado apenas em 2002, a UIV acolhe apenas 10 etnias, mas seu projeto é totalmente inclusivo. Os 2 500 hectares desta universidade sui generis podem e devem ser postos ao serviço das 36 etnias atualmente reconhecidas na Venezuela. Autóctones de outros países também são bem-vindos e até mesmo não autóctones, à condição de que falem pelo menos uma língua nativa.


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Às 6 horas, um jovem autóctone veio nos buscar, ao professor Nonato e a mim, para uma reunião de planificação. As ocas da UIV são bem distantes umas das outras e um guia era algo indispensável, nem que fosse para nos ensinar o caminho. Quando chegamos ao local, a reunião já havia começado. Recuperação do mel das colméias, compra de alimentos para a semana vindoura, preparação de um espaço para acolher os médicos cubanos da Missão Barrio Adentro, compra de cadeiras, tudo era exaustivamente discutido pelos presentes.


Os médicos cubanos da Missão Barrio Adentro faziam apenas duas “exigências” para dar plantão na UIV: um lugar para preservar a privacidade da relação médico-paciente e um ventilador!

Nonato fez uma longa exposição sobre o trabalho de cooperação por ele dirigido. Mas seu castelhano era apenas um português com um sotaque supostamente hispano. Cristina, uma jovem antropóloga brasileira, fazia as traduções consecutivas. Sempre com seu chimarrão argentino, Luísa, uma charmosa septuagenária veio me falar ao final da reunião. Ele me fazia pensar em Denise, uma sábia amiga de Montreal, que foi amiga de Camilo Torres e que sempre me faz avançar nessa vida, sobretudo quando puxa carinhosamente minhas orelhas. Mas Luísa não era Denise.


"Notei você. Está louco para provar meu chimarrão, não é mesmo? Infelizmente, tive um câncer bucal e essa “bombilla” é de uso pessoal. Mas eu tenho uma outra em casa. Quem sabe, da próxima vez.” Fiquei intrigado. Às vezes, o que tomamos por uma humilde expressão traz em si estranhas formas de egolatria.


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Primeiro foi um ruído estranho vindo de longe. Depois, pouco a pouco, e cada vez mais rapidamente, força incontrolável da Natureza, aquilo se abateu sobre nossa oca, apavorando lagartixas adormecidas, desfazendo planos de escorpiões prontos para o ataque.

A chuva, enfim a chuva vinha reverdecer os campos feridos por um sol punitivo, que parecia decidido a acabar com todos nós, deixando aos anjos do Senhor a missao de separar os Bons dos Infiéis.

A chuva, que tantas mãos unidas haviam pedido em oração estava ali outra vez, tranquilizando os ternos brotos quanto a seu futuro de árvore, abrindo sobre o solo gretado novos Nilos, novos Amazonas, que formidas aturdidas veriam como filhos do Dilúvio!

A chuva vinha encher nosso rio em risco de se tornar regato, inspirar orquestras de rãs e de pássaros, espessar mangas e cajus, que nos revelariam saudáveis doçuras.

A chuva, bendição do Mais Alto. Eu sair no meio da noite, receber suas carícias sobre meu corpo desnudo, beber suas gotas em espírito de comunhão.

Retorcido em minha rede, despertei para a realidade da grande seca persistente, para o sufocante calor noturno e para aquela dor aguda em minha bexiga que eu devia imperativamente aliviar.


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Os relatos anteriores podem ser lidos nos links abaixo

Relato 1

Relato 2

Relato 3

Relato 4

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